Era o dia mais frio do ano
Na casa antiga,
O vazio das férias de julho
Todos foram viajar
E o menino de corpo inquieto
Ficara para trás,
Sozinho, junto ao eco dos cômodos
Invadido por um tipo de solidão ao contrário
O menino dançava euforicamente pela casa
Enrolado por cobertas que fingia ser cenário
Daquela dança sacrificial ao ritmo dissonante de Stravinsky
Foi a maneira mais instintiva que arrumou
Para se entreter e se esquentar.
Manchando as paredes com movimento e tremor
Atravessando aos giros os corredores escuros
Ele improvisava em cada canto
E cada canto se contaminava de som e fúria
Uma força visceral que lhe tomava as pontas do corpo
E lhe fazia aumentar o ritmo,
Pulsando rigidamente naquela cadência canibalística
Como uma auto-devoração,
Uma dança progressiva que riscava as portas e janelas
Que filtrava os graus e lhe fazia esquecer da temperatura
Febre de oboé, calor de eufônio
E a sinfonia transbordando pelos furos do corpo
Escorria pelos olhos, nariz e boca.
Havia evocado o ritual da sagração
O profano e o divino
O corpo que cai
Num ato de euforia o menino se despiu
E ofereceu teu corpo inquieto aos deuses do som
Era o dia mais frio do ano
E ele, o menino que dançava para se aquecer
Havia se entregado a ventania.
Guilherme Radonni.
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