Era inverno e o frio dos sorrisos
Se misturavam com o frio das ruas
Os mendigos permaneciam em seus lugares
E a indiferença também
Embaixo da sola dos sapatos
A sujeira e a rotina
Nada interferia o fluxo da paisagem
Nem mesmo os olhares vazios
Esses mesmo olhares que denunciavam
Que ninguém naquele quadro estava ali de fato
Todos estavam na vontade de não estar em lugar algum
Menos ela, a garota quieta no fundo do quadro
Logo ali, perto da moldura
Perto da timidez e da mancha cinza na parede
Ela não queria estar em outro lugar
Se não ali, pois do ângulo onde repousava
A garota de olhos baixos conseguia enxergar
Do outro lado do quadro, uma senhora que dançava feito uma cigana
A garota se inflamava inteira por dentro
Com uma vontade do tamanho de todos os sapatos juntos
De atravessar a rua no ritmo da dança improvisada
Mas por algum motivo maior,
A garota não se arriscava a dar um passo se quer
E permanecia ali, tímida e insossa
Como a mancha cinza na parede.
Os outros não notavam nada
Nem a garota, nem a velha
Mas isso mudou depois que o vigésimo passageiro
Entrou no ônibus, que vinha do final da rua
Para o começo do quadro.
Ele, o sem jeito do vigésimo passageiro estava um tanto desnorteado
Como quem nunca houvera pegado um ônibus na vida
E resolvera pegar logo naquele dia
O dia em que a garota tímida do final do quadro
Tomou coragem de atravessar a rua dançando feito uma louca
Hipnotizada pela cigana vestida de convite
No mesmo momento o passageiro que iria pegar as moedas
No fundo do bolso do casaco, tropeçou no cadarço da jovem estudante loira
Que esbarrou na gestante grávida de gêmeos
Que caiu em cima do motorista. Ele, o coitado do motorista
Tentou frear o comboio, mas por causa da garoa
O asfalto estava molhado o que retardou a parada sem sinal do ônibus
Por um instante todo o quadro fora interrompido
E todos os sapatos estavam voltados para o acidente
Fratura exposta, traumatismo craniano, sangue boiando.
Mas estava frio e ninguém queria estar realmente ali
Depois de um minuto ou dois
Os mendigos voltaram para os seus lugares
E a indiferença também
Enquanto os outros já não notavam mais nada
Nem a garota, nem a velha.
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